Shukraan

heide tatiana
3 min readAug 12, 2019

--

prosa poética

a porta da escolinha da minha filha fecha atrás de mim e a frente um grupo de mulheres islâmicas discutem entusiasmadas. cada uma veste um lenço de uma cor e falam tão alto em árabe que eu tenho vontade de me juntar, mas a única coisa que sei dizer é shukraan. destranco a bicicleta devagar para ouví-las mais um pouco. tento colocar aquelas cenas e aquelas mulheres com seus véus coloridos na minha pupila com meus olhos de 34 anos e os véus vão passar como tudo. como as crianças que vão crescer e o inverno que vai voltar. mas ainda assim eu tento esticar essa matéria elástica e intocável. dentre as mulheres só conheço a Mona. a mãe de quatro meninas muito doces pelas quais tenho especial carinho. Mona, como minha mãe, é filha de palestinos e já falamos tantas vezes sobre essa nossa origem comum e meu desejo de ir a palestina. tenho certeza que discutem algum acontecimento recente, algum conflito talvez dentro da própria escolinha. Fecho os olhos repetindo algumas palavras que tento decorar, mas poucos segundos depois shukran volta a ser, novamente, a única palavra que sei. sei também aquela que diz que você tem merda no bigode. mas não ouso jamais dizê-la.

desisto de tudo isso e pedalo sentindo saudades do melhor daqui. esse pedalar para todos os lados e esse mapa topográfico de línguas dispostos em pequenas ilhas ao longo de um quarteirão. ilhas que se dissipam como bancos de areia e se reconfiguram continuamente afastando-se e agregando-se. ucraniano, árabe, sérvio, russo, curdo, turco, italiano. (eis )esta é a minha vizinhança.

é verão, desço a ladeira sem fazer esforço, tudo parece maravilhoso e eterno. como pode parecer tão eterno? esse lugar cujo inverno é tão severo, não apenas pela baixa temperatura, mas também pela geografia desprivilegiada que concentra nuvens sobre nossas cabeças e que torna o humor daqueles que dominam a germanística seus povos falantes de alemão brancos tão aborrecido com a vida. são as nuvens.

meu aniversário se aproxima e eu me aproximo da garagem dos bombeiros que fica no fim da ladeira. vejo pelo vão inferior do portão botas de borracha e jatos que golpeiam o chão. acho curioso ver água na garagem de bombeiros, como se apagassem a si mesmos. e com isso me dou conta de que os bombeiros de fato apagam a si mesmos. que estão associados ao elemento fogo, mas na verdade são pura água. como se fossem semioticamente disfarçados. ou como se possuíssem um santo de cabeça na frente e outro atrás. me atenho a dualidade dos bombeiros enquanto deslizo a ladeira tão cansada pelas noites mal dormidas de mais um dente escondido. escondido na gengiva como a água do bombeiro escondido atrás do fogo. sou esses bombeiros. pareço de fogo, mas sou pura água. inundo as ruas com meus pensamentos,

caio da bicicleta excedendo uma despedida. penso que o verão não vai acabar nunca mais. mesmo que aqui seja mais inverno. o agora parece durar para sempre e eu acredito nisso.

--

--